Amanhã não fui, disse minha pequena ao se lembrar de que, no dia anterior, não havia ido à escola.
Ontem também não irei, pensei.
E como dói.
Sejam bem-vindes à poesia não vem, a newsletter oficial de Sarah Munck.
Entre e sinta-se em casa.
No final de semana passado, reli “O Aleph” , conto de Jorges Luis Borges.
Se você ainda não o fez, quero lhe incentivar a fazê-lo.
Na narrativa, Borges se apropria da literatura para criar o inexplicável e o sobrenatural a partir do narrador Aleph que vê em um único ponto no espaço, a projeção de todos os pontos do universo.
Sim, algo complexo. Não nos esqueçamos de que estamos tratando de Borges.
E é claro que estamos lidando com o tempo - uma das questões mais debatidas desde a Grécia antiga.
Para se ter uma noção de como o tempo permeia a mente humana, façamos um
brevebrevíssimo recorrido filosófico.
Já sabemos que há muito pano na manga e que muita gente ficou de fora da lista.
Para Heráclito de Éfeso (535 a.C - 475 a.C), filósofo pré-socrático, o tempo permanece em movimento: πάντα ῥεῖ (panta rhei), ou seja, “tudo flui”.
Platão (428/427 - 348/347 a.C) reconhece o tempo como uma imagem móvel da eternidade, uma representação imperfeita (mundo sensível) do estado imutável da eternidade (mundo das ideias).
Já Aristóteles (384 a.C - 322 a.C), discípulo de Platão, considera o tempo como pertencente ao plano físico, sendo definido pelas transformações e movimentos.
Agostinho (354 d. C - 430 d.C), em suas Confissões, discursa sobre a subjetividade do tempo, que se constrói na mente humana por meio da memória e da esperança em relação ao futuro.
Kant (1724-1804), em Crítica da Razão Pura, embora com um enfoque filosófico distinto de Agostinho, também enxerga o tempo como algo inerente à sensibilidade humana e à sua experiência.
Bergson (1859-1941), por sua vez, distingue o tempo físico (cronológico) do tempo vivido internamente: dureé, tempo vivido e experimentado subjetivamente.
Aprofundando-se nos preceitos de Bergson, Deleuze (1925-1995) reconhece o tempo como uma linha infinita e não linear, que se constitui na sobreposição do passado, do presente e do futuro.
Reflito sobre o conceito de duração de Bergson, que não se limita ao tempo cronológico, mas se expande para o tempo fluido da consciência.
Do mesmo modo, penso na filosofia da différence (diferença) explanada por Deleuze, por meio da qual a realidade é forjada no processo contínuo das diferenças.
A différenciation (diferenciação) deleuziana aponta para aquilo que se transforma e se torna diferente no próprio movimento criador. Assim, o tempo urge como uma força criativa que nos permite vivenciar múltiplas existências, incluindo o dialogo entre passado, presente e futuro.
Escrevi um pequeno ensaio sobre a filosofia da différence, tendo em vista a diversidade.
Por que ler uma escritora autista? Clique aqui para ler.
A memória é um lugar para quem decide ficar
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Amanhã não fui, disse minha pequena.
Recordei-me daquele momento, quando organizamos seu guarda-roupas e as roupinhas que já não lhe cabiam.
Ontem também não irei, pensei.
E como dói.
A memória é esse lugar para quem decide ficar.
Opto por transitar por esse caminho. Estar viva é o que me permite deglutir memórias. Assim, retorno meu pensamento para à arte literária.
O relógio não para. Posso atirá-lo ao mar, lançá-lo ribeira abaixo ou estocá-lo no freezer.
Mas o encaro no espelho. Sei que sobre minhas pálpebras pulsa o tempo cronológico.
Porém, também sei que na escrita há um pouso seguro para aquilo que o ponteiro não aponta. Há um lugar para a exploração do infinito.
Reconheço, na percepção artística, a captura da durée (duração) bergsoniana, que me conduz ao tempo contínuo da subjetividade. “Ontem” e “amanhã” entrelaçam-se por sentimentos, lembranças, experiências.
Recebo as linhas de fuga deleuzianas, das quais emergem novas realidades e temporalidades.
Não seria, então, a Literatura uma forma de me estender ao universo?
Permanecer nesse mundão quando minhas mãos já não o alcancem?
Amanhã, também, não irei, filha.
Mas estarei.
a poesia não vem indica:
AGOSTINHO, Santo. Confissões. Traduzido por Paulo S. M. A. de Carvalho. São Paulo: Editora Nova Cultural, 1990.
BERGSON, Henri. L'Évolution créatrice. Paris: Félix Alcan, 1907.
______. Matière et Mémoire. Paris: Félix Alcan, 1896.
BORGES, Jorge Luis. El Aleph. En: Ficciones. Buenos Aires: Editorial Sur, 1944.
DELEUZE, Gilles. Cinéma 1 : L'image-mouvement. Paris: Éditions de Minuit, 1983.
______. Différence et Répétition. Paris: Presses Universitaires de France, 1968.
KANT, Immanuel. Crítica da razão pura. Tradução de Paulo Mendes de Almeida. São Paulo: Editora Atlas, 1995.
Adorei essa dissecção do tempo.
A memória é bússola, que nos guia nas profundezas das lembranças! Sem ela nos perdemos nos labirintos entre passado e presente, vejo td isso em meu pai com Alzheimer.