Fui convidada para uma festa, mas não me sinto em casa
Confesso que, quando era apenas (com a palavra em itálico) professora, levantar críticas era um pouco mais fácil.
Explico-me: tornei-me uma poeta publicada. Caminho, pois, entre ovos.
A festa, por sinal, é nada menos que a poesia brasileira contemporânea: tão fragmentada, tão clubista.
E onde fica a poesia nesse baile? Talvez à janela, espreitando a brisa. Ou quem sabe, tomando uma gelada na varanda.
Mudam-se as estações, troca-se o drink.
Não se engane! Uma xícara de café também requer um esforço filosófico.
Talvez eu seja um penetra.
Agora, só me resta a soleira da porta.
O lado bom é que não estou só. Há mais gente comigo.
Sejam bem-vindes à poesia não vem, a newsletter oficial de Sarah Munck.
Entre e sinta-se (finalmente) em casa!
Nas últimas semanas, reli a obra de Michel Maffesoli (1944 -) , O tempo das tribos: O Declínio do Individualismo nas Sociedades de Massa, publicada originalmente na França em 1988.
A partir dos ensaios, colhi questões que me levaram a refletir sobre a poesia brasileira contemporânea. Esse tema, para além do meu envolvimento autoral, me interessa bastante na pesquisa.
Aqui vai uma explanação tímida sobre a obra, uma vez que é sempre preciso ler todo o livro para captar suas nuanças.
Maffesoli observa as transformações sociais contemporâneas e suas fragmentações, apontando para o que ele chama de “tribos”, ou seja, novas formas de agrupamentos em que o individualismo cede lugar para as comunidades nas quais as relações sociais são regidas por emoções e afinidades comuns.
Assim, nessas diferentes aglomerações, há um forte apelo a valores estéticos que geram uma sensação de pertencimento mais flexível e provisória do que a inerente às grandes instituições da modernidade, como a igreja, o Estado e a família, e ao individualismo moderno.
Pertencer é importante. Mas onde mora o perigo?
Na transitoriedade das relações e em sua própria fluidez, o que me leva a pensar que as tribos não são feitas de concreto, mas quiçá de papelão.
Além disso, na própria fragmentação social que, ao invés de acolher e criar redes de pertencimento, torna a sociedade menos coesa e solidária e mais egoísta.
Apesar de sua importância, alguns críticos (sobretudo marxistas) afirmam que Maffesoli subestima as relações de poder e dominação que permeiam as sociedades contemporâneas, uma vez que o conceito de tribalismo se legitima sob uma visão despolitizadora, na qual a estrutura econômica e a luta de classes não são evidentes.
A verdade é que estamos vivendo o tempo das caixas. Alguns dirão das bolhas. Outros do comunitarismo.
E a pergunta que eu lhes faço é: o “estar juntos” não camuflará novas formas de opressão e diferentes sistemas de dominação?
Acabo retornando a Foucault.
Muito embora Foucault (1926 - 1984) não discuta diretamente a questão das tribos, o filósofo se dedicou a formular reflexões importantes sobre poder e conhecimento.
Conforme o intelectual, o poder está presente em todas as relações sociais e em todas as relações humanas, incluindo comunidades, grupos e práticas cotidianas, não sendo, portanto, legitimado somente por grandes instituições.
Enquanto Maffesoli enxerga as tribos como espaços identitários e de afetividade, Foucault possivelmente as veria como espaços mais sutis de domínio e normalização.
Isto é, não se engane:
A partir de uma visão foucauldiana, é possível admitir, por exemplo, que, ao mesmo tempo que os grupos se formam como resistência ao poder e à opressão, também organizam normativas que oprimem outros. E assim por diante.
É pensar sobre a “periferia da periferia”. Algo assim.
Em suma, o oprimido pode tornar-se o opressor.
Nesse pensamento, um pouco de Foucault e um tanto de Paulo Freire (1921-1997).
O clubismo existe. Infelizmente.
Falar sobre a poesia brasileira contemporânea é perceber a capilaridade do poder que se manifesta em diversos espaços: nas premiações, nas feiras, nas performances, nas escolhas editoriais, nos catálogos e revistas, no cânone, no centro e na periferia, nos grupos de escrita — grandes e pequenos —, nas editoras de diferentes portes e, claro, nas inúmeras plataformas sociais.
Esses fluxos se revelam nas parcerias, na estética "instagramável" e até mesmo em uma simples curtida.
Contudo, a poesia resiste, livre e solta na varanda da festa.
Já leu algo “fora da caixa”? Fica a dica.
Até lá.
Vamos conversar?
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Alguns diálogos possíveis:
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1970.
FOUCAULT, Michel. L'Archéologie du savoir. Paris: Gallimard, 1969.
___________________. Surveiller et Punir: Naissance de la Prison. Paris: Gallimard, 1975.
LORDE, Audre. Sister Outsider: Essays and Speeches. 1984
LUGONES, María. Heterosexism and the Coloniality of Gender (2007).
MAFFESOLI, Michel. Le Temps des tribus: le déclin de l'individualisme dans les sociétés de masse. Paris: Métailié, 1988.
MIGNOLO, Walter. Local Histories/Global Designs: Coloniality, Subaltern Knowledges, and Border Thinking. Princeton: Princeton University Press, 2000.
QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y clasificación social. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales, vol. 6, n. 1, 2000, pp. 67-92.
Seu texto e aa questões que o endossam são pertinentes, porque por essas e por outras razões, a poesia contemporânea brasileira foi a óbito. O clube dos instagramaveis é a tribo que hoje rege a batuta da Poesia contemporânea brasileira.
Como sempre, texto muito impactante e recheado de significados. Eu teria tanto a dizer, mas só vou te parafrasear aqui, porque nunca uma frase me descreveu tanto: "Fui convidada para uma festa, mas não me sinto em casa." Esse sou eu, em tudo que tento participar e me "encaixar" nessa vida.